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Adeus Flávio



Dentre os mais variados fenômenos das sociedades modernas a morte é ainda aquele que mais me surpreende. O ano de 2015 foi realmente devastador para o mundo da música, perdemos grandes músicos e até instituições, como o fim da rádio Ipanema, mais um revés da indústria autominada pela modernidade.


Entre as mortes mais marcantes temos grandes nomes como B.B. King, Steve Mackay e agora Flávio Basso. Pensar no peso da morte de um artista local como ele que era tão próximo e, ao mesmo tempo, suficientemente distante, jogando o velho jogo do underground porto-alegrense, é das coisas mais tristes que poderiam acontecer neste final de ano. Do mesmo modo é difícil ter de lidar com a falta e o legado que ele nos deixa, é uma tarefa complexa medir a relação subjetiva que o personagem Júpiter Maçã, encarnado por Flávio, tinha com cada um de nós, especialmente pra quem vive no sul.


Desde ontem quando soube da noticia, fiquei acompanhando as mais diversas reações aqui pela minha time line, positivas e algumas muito negativas, realmente fiquei pensando profundamente nessa relação tão subjetiva e única que existe pra cada ser, essa conexão tão distinta dele com a nossa Essência Interior.


Nesse debate de pensar esse jogo do underground local, entre despedidas emocionantes, boatos e comentários infelizes, concluo que problematizar agora pontos de contato entre sua personalidade excêntrica e sua obra, questionar qualquer coisa que seja, ainda que com fundo puramente teórico e, mesmo com a maior das boas intenções, no sentido da desconstrução de alguns valores sociais da nossa velha Porto Alegre, é uma das coisas mais hediondas e desrespeitosas que se pode fazer neste primeiro momento, mais especificamente, tanto com o próprio Flávio, quanto com sua família, amigos e tais quais como eu admiradores e fãs.


Digo isso porque o Flávio (ou o Júpiter Maçã) de alguma forma marcou parte da minha vida, há mais ou menos 10 anos atrás, quando eu era só mais um adolescente perdido, em muitos sentidos, encontrei na suposta loucura de sua obra muitas direções, me identifiquei não tanto pessoalmente, mas de uma forma quase que unicamente sensível e musical.


Era fácil entender, dentre uma das poucas memórias dessa época, tem aquela que eu sempre cito (e recito): o clássico show no também falecido e saudoso Garagem Hermética, no qual em um momento logo após o solo de Um Lugar do Caralho, as pessoas em êxtase tentavam tocá-lo e interagir com ele de alguma forma, lembro de eu ficar lá na frente com os braços pro alto, os olhos fechados em profunda conexão com o momento, quando ele aperta a minha mão, abro os olhos e nos olhamos por um segundo e logo vejo ele fazer o mesmo com todos que estavam próximos. Descrevendo assim não parece nada, mas no entanto eu sempre penso que a sensação que tive naquele momento pudesse ser algo próximo de Um Lugar do Caralho.


E talvez realmente fosse esse o exato sentimento, só fui entender isso há muito pouco tempo, depois de ter um contato breve com o dito underground porto-alegrense como promotor cultural e pau-pra-toda-obra de uma banda, de estudar a sério música e (re)compor as minhas coisas, e ver o quanto essa cidade e sua relação com a arte é distorcida, porque as pessoas nesse meio se relacionam de um modo distorcido. O cinismo alcoviteiro, a volatilidade interesseira e as armadilhas do falso glamour são algumas das coisas quebram a possibilidade de se fazer qualquer coisa realmente do caralho, Flávio-Júpiter lidou com isso da sua maneira, em sua vida e, infelizmente, lidará em sua morte. A despeito disso lamento apenas jamais ter tido a possibilidade/oportunidade de devolver pra ele toda a inspiração e horizonte que me deu, sua partida inesperada deixou seus trabalhos inacabados, alguns que talvez jamais conheçamos. Da mesma forma ele jamais terá conhecimento de como inspirou o roteiro do minimetragem (nunca filmado) “Quer um cigarro?” que escrevi, ou vai poder vai poder ouvir “ O Quintaneiro disse pro Maçã”, a canção que compus numa gana pueril de dialogar com ele sobre todas essas coisas, onde parafraseei os seguintes versos do Quintana: “todos passarão, eu passarinho”* no trecho que depois alterei mas sem perder as referências. A verdade é que nada disso mais importa, e isso tudo deveria ser um adeus fraternal, me despeço deixando ao universo a mensagem na garrafa que jamais consegui entregar, fosse por oportunidade, coragem ou por pensar que a morte jamais poderia beijá-lo como uma cena de cinema da vida real.


E assim deixo os meus simples versos, (e minha versão demo) inspirados e dedicados a Flávio Basso, o eterno Júpiter Maçã, descanse em paz, porque a terra e o céu são apenas um só.


Enquanto essa geração beatnificada

fica esperando por uma força de vanguarda

Como uma nova canção: tropicalista, pós modernista

Eles querem sintetizar o amor

e se encontrar em uma viagem transdimensional

E eu só quero alcançar o céu

e eu vou deixar os meus pés bem aqui no chão

Eu vou tomar um ácido

para ficar sarcástico

E você sabe como isso é tão plástico

Como num filme b monocromático

Ela me beija, cena de cinema,

ela me beija, cena de cinema

E eu só quero alcançar o céu

e eu vou deixar os meus pés bem aqui no chão

Ela me beija, a lua me beijou

Ela me beija, a lua me beijou

E eu vou beijar a lua!

Numa tarde na fruteira

O quintaneiro disse pro Maçã: Todos de avião, você passarinho

Todos os corações, você sozinho*

E eu vou deixar os meus pés bem aqui no chão

Porque a terra e o céu são apenas um só

Olá planeta azul, olá planeta azul

e eu vou deixar os meus pés bem aqui no chão

Eu vou tomar um sarcástico

para ficar ácido

E você sabe como isso é tão monocromático

Como num filme b plástico

Ela me cinema, cena de beija,

ela me beija, cena de cinema

*versos citados que eram retirados da poesia de Quintana e foram modificados.

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